A assimilação é inevitável?

Christiane Silva Salomoni
3 min readOct 16, 2022

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Quando a temática da tecnologia é abordada — em conversas cotidianas ou, até mesmo, em debates mais acadêmicos — é comum ouvir-se declarações do tipo: “a tecnologia é apenas um instrumento, não é boa ou má, o importante é o uso que fazemos dela”. Pasquini & Maranhão apontam que tais perspectivas expressam a Tese da Neutralidade da Tecnologia, uma crença dominante na cosmovisão contemporânea, da qual o Cristianismo não está isento. De fato, a Igreja Cristã tem assimilado — ou sido assimilada? — a tecnologia em suas práticas, inclusive na celebração do Culto ao Senhor. Mas é verdade que a tecnologia é neutra e que estamos ‘a salvo’ se apenas a usarmos de forma “ética e cristã e para a glória de Deus”?

Uma linha de pensadores responde negativamente a essa pergunta e aponta que é necessário aprofundar-se filosoficamente para entender o real impacto da tecnologia em todas as esferas da vida humana. George Grant, por exemplo, nega a neutralidade da tecnologia quanto aos fins (ou seja, a tecnologia não é “apenas” um meio para atingir um fim), afirmando que ela “produz, define e restringe uma série de opções subsequentes que podem ser selecionadas” e que, inclusive, num processo denominado adaptação reversa por Langdon Winner, “aquele que escolhe é moldado pelas escolhas sendo feitas”. Na mesma linha, Jacques Ellul alerta para a autonomia da técnica pois, através do princípio da eficácia (capacidade de entregar resultados melhores, de forma mais rápida, e de resolver problemas), ela “integra todas as coisas… o homem não está adaptado a esse mundo de aço: ela o adapta.

Esse processo da tecnologia moldando a realidade pode ser visto claramente em uma igreja com transmissão online do Culto. Para começar, todo o ambiente físico da igreja é reconfigurado: são introduzidas câmeras, acessórios, computadores, iluminação especial — e pessoal “de serviço” (que estarão no Culto, mas não participarão dele) para manejar o equipamento. Além disso, a liturgia é alterada: para que a “platéia virtual” se sinta parte do Culto e não se desconecte, são necessárias táticas, tais como a interação do dirigente e/ou pregador com as câmeras… E, de forma ainda mais problemática, a própria pregação é impactada: especialmente em tempos “politicamente corretos”, é preciso ter muito cuidado com o que se fala e faz; afinal, o que está acontecendo no Culto está sendo transmitido — literalmente — para o mundo todo, com todas as consequências que podem advir disso. Em resumo, a inserção da tecnologia para transmissão online molda inexoravelmente a dinâmica do Culto: admita-se ou não, a “platéia virtual” passa a ter precedência sobre quem está fisicamente presente.

Agora, o que fazer diante dessa realidade? Será a tecnologia, como previu Ellul, um “objeto em si, realidade independente e com a qual é preciso contar”? Precisamos mesmo ser ‘assimilados aos Borg’, resistir é inútil? Não há resposta fácil! De um lado, há o argumento — inegável — da relevância da tecnologia para a divulgação do Evangelho. De outro lado, porém, há o impacto direto e expressivo no momento de Culto ao Senhor. A questão é: essas duas coisas estão inevitavelmente ligadas? É possível usar a tecnologia para a pregação do Evangelho e não usá-la para a transmissão do Culto? Talvez a resposta ao dilema não esteja na filosofia, nem na ética, mas sim na teologia: afinal de contas, existe Igreja virtual? Existe Culto online?

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Ensaio elaborado [versão estendida — original com 500 palavras] para o Curso de Pós-graduação Deus, o Cosmos e a Humanidade da Academia ABC2 — Disciplina Filosofia da Tecnologia, ministrada pelo professor Fernando Pasquini.

Tema: Carl Mitcham justifica a filosofia da tecnologia afirmando que “Os esforços em integrar a discussão filosófica geral a questões morais específicas tem sido especialmente limitados. (…) Ao se afastar das demandas da prática e explorar questões filosóficas básicas, busca-se criar mais espaço aberto. Através dessa abordagem, pode-se em última análise fazer contribuições mais profundas à reflexão ética do que o engajamento com problemas morais particulares”. De forma a comprovar o que Mitcham afirma, mostre que conceitos filosóficos mais gerais sobre a tecnologia podem realmente ajudar em questões éticas específicas e aplicadas.

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Christiane Silva Salomoni

Engenheira Cartógrafa, Mestre em Sensoriamento Remoto, Especialista em Ciências Contemporâneas e Teologia Cristã.